"Chegando a noite, acabara meu jantar e sentia a necessidade de ir sozinho respirar o ar perfumado dos loureiros em flor. Já atravessara quase inteiramente a praça Vitor Hugo, quando ouvi atrás de mim um pequeno passo bem conhecido, rápido e irregular. Virei-me no exato momento em que Vincent se precipitava sobre mim com uma navalha aberta na mão. Meu olhar nesse momento deve ter sido muito poderoso, pois parou e, baixando a cabeça, retomou correndo o caminho de casa.
Será que fui covarde nesse momento e não deveria tê-lo desarmado e procurado acalmá-lo? Várias vezes interroguei minha consciência e não me censurei em nada
Quem quiser que me jogue a primeira pedra.
Van Gogh voltou para casa e imediatamente cortou sua orelha, exatamente na base da cabeça. Deve ter levado um certo tempo para estancar a força da hemorragia, pois no dia seguinte numerosas toalhas molhadas estavam estendidas nas lages dos dois cômodos de baixo. O sangue sujara os dois cômodos e a escadinha que subia para o nosso quarto.
Quando teve condições de sair, a cabeça envolvida por um gorro basco completamente enfiado, foi direto para uma casa onde, na falta de um compratriota, encontra-se alguém conhecido, e deu ao sentinela sua orelha bem limpa e fechada num envelope. "Tome", disse ele, "como lembrança minha", depois fugiu e voltou para casa, onde se deitou e adormeceu. No entanto, teve o cuidado de fechar as venezianas e de colocar numa mesa perto da janela uma lamparina acesa.
Na cama Vincent jazia, completamente envolto pelos lençois, todo encolhido com os joelhos junto ao corpo: parecia inanimado. Suavemente, bem suavemente, apalpei seu corpo cujo calor era com certeza sinal de vida. Senti como se toda a minha inteligência e a minha energia estivessem voltando.
Quase em voz baixa eu disse ao comissário de polícia:
-Acorde-o com muito cuidado, e se ele perguntar por mim diga-lhe que parti para Paris. Minha presença poderia lhe ser fatal."
Foto: Quadro de Van Gogh
Continua.
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